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Recensões

O Jornalismo e a turbulência da pós-revolução. A Revolução nos Média. Maria Inácia Rezola e Pedro Gomes (coords.)

Tânia Alves
Referência(s):

A Revolução nos Média, Maria Inácia Rezola e Pedro Gomes (coords.), Lisboa, Tinta da China, (200 páginas), ISBN 9789896712198

Texto integral

1O livro A Revolução nos Média, coordenado pela investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL) e docente na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS-IPL) Maria Inácia Rezola e pelo investigador, também do IHC da FCSH-UNL, Pedro Marques Gomes, insere-se numa corrente de estudos que investiga, numa perspectiva histórica, o processo revolucionário que sobreveio ao 25 de Abril de 1974 e o concomitante processo de transição para a democracia em Portugal, elegendo como ângulo de análise as profundas convulsões que se operaram no campo dos media. Na esteira dos trabalhos – destacados logo na introdução – de autores como José Medeiros Ferreira, António Reis, Kenneth Maxwell, Josep Sánchez Cervelló ou Mário Mesquita e José Rebelo, assim como de um espólio razoável de teses académicas e estudos valiosos por parte de centros de investigação e universidades portuguesas, o livro em análise empreende uma abordagem interdisciplinar, na senda de uma convergência entre a História e as Ciências Sociais, que integra a história política e a história social e pensa os entrecruzamentos entre o poder político e o poder mediático.

2Logo após o 25 de Abril, e com peculiar ênfase no chamado Verão Quente de 1975, instaura-se, associado ao processo de falência da autoridade do Estado, um período de elevada polarização política e de clivagens muito profundas a nível partidário, lutas a que os órgãos de comunicação não ficam alheios. Muito pelo contrário, os media são catapultados enquanto locus relevante do conflito, vendo-se como alvos de múltiplos esforços de controlo pelas forças partidárias que se contendem na arena política, ao mesmo tempo que se assumem, eles próprios, como intervenientes que, pelas altercações que sofrem no seu âmago, amplificam sobremaneira a efervescência que os circunda e da qual participam. Este dialogismo empresta à obra uma certa versatilidade, traduzida com brio no título, que poderia ser lido de forma plurívoca e numa sequência invertida: A Revolução nos Média é também, e afinal, Os Média na Revolução.

3O livro reúne um conjunto de seis estudos, desenvolvidos por diferentes autores, que se reportam a episódios ocorridos nos diversos órgãos de comunicação, desde o medium televisivo – RTP – à rádio – Rádio Renascença – e a vários jornais. Tais acontecimentos confluem numa unidade bastante poliédrica que nos permite uma compreensão lata dos processos conflituantes que abalaram o âmbito da comunicação social no pós-25 de Abril e que nos instiga a refletir sobre o modo como os media e os seus profissionais lidaram com as liberdades recém-conquistadas. Sob este diapasão, o livro lança ainda a questão de fundo da complexa bifurcação entre a máxima da Revolução e o postulado da liberdade dos media. A leitura dos vários estudos empíricos exorta-nos a formular interrogações, entre as quais podemos sobrelevar as seguintes: que noção de jornalismo é plausível quando nos defrontamos com um contexto de acentuado antagonismo, e em que os próprios meios de comunicação, altamente politizados e associados à expressão de tendências políticas diversificadas, continuam, não obstante a erradicação da censura que vigorara por mais de quatro décadas e a restituição formal das liberdades individuais e da liberdade de expressão e de informação, a ser objecto de tentativas de instrumentalização, diluindo-se o hiato que aparta os interesses políticos da revolução dos deveres profissionais de informar? Qual a possibilidade de exercício do jornalismo e que construção social da realidade é exequível quando os media são por um lado guiados no sentido da concretização de desígnios programados para o futuro do país e por outro convertidos num palco dramático em que escolhas, discursos e decisões ocorridos no seu interior são estrategicamente exportados para a circunferência política e comutados em móbil de ataque e de descredibilização dos oponentes? A que estirpe de jornalismo nos referimos quando, além de no equilíbrio e na integridade informacional, os profissionais de alguns meios mainstream, que, mais do que a condição de jornalistas, incorporam a de agentes ou até porta-vozes de um ideário político-partidário, estão engajados no combate político da época e envolvidos em projectos de saneamento obstinados pela total “desfascização”, chamemos-lhe assim, dos meios e por uma autêntica revolução no plano jornalístico?

4A abrir o volume, Maria Inácia Rezola, no artigo intitulado “A RTP no PREC (1974-1975): Sem recuos nem tibiezas em ordem à limpeza radical”, estuda a forma como a RTP experiencia os conturbados anos de 1974-75 e realça a avidez de uma ruptura radical com a dinâmica anti-democrática antecedente. A RTP, que, segundo a autora, se tinha destacado como um instrumento de propaganda nevrálgico ao serviço da ditadura, passa, logo após o derrube desta, por um processo de saneamentos. Este conheceria uma exacerbação depois da tentativa de golpe de Estado de 11 de Março de 1975, desencadeando uma dinâmica que não ficou imune a confrontos entre trabalhadores e entre estes e a administração da empresa. Além de retratar as purgas políticas e a mobilização de funcionários no interior da RTP, Maria Inácia Rezola enfatiza a transformação substancial evidenciada no discurso e na programação televisiva, revestindo-se, ambos, da roupagem de “um modelo revolucionário”, para empregar os termos da autora. Inaugura-se então uma nova concepção, de uma televisão “do e para o povo”, à qual competiria dar voz e visibilidade a este, metamorfose essa que atiça o descontentamento de muitos trabalhadores com a política da administração e gera divisões quanto à estratégia a seguir.

5O segundo artigo, escrito pelo investigador do CEIS20 da Universidade de Coimbra João Figueira, foca, sob o título sugestivo “Caso República. A morte de um jornal cansado de lutar”, as contendas – que têm sido revestidas de forte controvérsia – travadas no República, jornal que pode ser visto como um microcosmos das contradições políticas dominantes nesse período. O caso, marcado pelas divergências entre redacção e direcção e entre gestores e administradores do jornal, implicou peripécias em catadupa, como a suspensão do exercício das funções de direção de Raul Rego e Vítor Direito e das de chefia de direcção de João Gomes, com uma forte oposição da comissão dos trabalhadores. Tais ocorrências permitem descortinar, segundo o autor, a condição dos jornalistas como atores intrinsecamente políticos, bem como o caráter da informação jornalística como uma arma ideológica. Com efeito, este episódio não permaneceu circunscrito às fronteiras internas do jornal, contraindo contornos mais amplos, que culminaram na saída do PS do IV Governo, e tendo granjeado uma dimensão internacional, projectada em grande parte sob a égide de Mário Soares. João Figueira particulariza a interpretação do Le Monde, que, diversamente da maioria da imprensa estrangeira, não alinhou, a respeito deste caso, na tese de um assalto dos comunistas a um jornal socialista. Na perspetiva do jornal parisiense lembrado pelo autor, o PCP não controlava os trabalhadores que rivalizavam com a direcção e a linha editorial assumida pelo jornal, e a Comissão Coordenadora de Trabalhadores, articulada com os gráficos e os sectores administrativos, era dominada por elementos de outros partidos da esquerda e da extrema-esquerda. Por conseguinte, o “caso República” foi, ao invés, compreendido como uma estratégia, conveniente ao PS, de conversão em símbolo da luta e da resistência à influência que o PCP e o MFA procuravam consolidar. João Figueira sublinha como o República, que se tinha diferenciado pela sua postura de oposição à ditadura do Estado Novo, acabará paradoxalmente por soçobrar na sequência deste complexo celeuma.

6Em “O Semanário O Jornal: um sonho de jornalistas num país em revolução”, Pedro Marques Gomes, investigador que publicou recentemente a obra Os saneamentos políticos no Diário de Notícias no Verão Quente de 1975 (Alêtheia, 2014), oferece-nos o exemplo de um “jornalismo vivo e dinâmico”, que, transpondo o tom monolítico da imprensa estatizada, emerge como uma alternativa original e audaz no panorama mediático nacional, tanto no conteúdo (interpretativo e com uma notória inclinação para a investigação e a opinião), no grafismo e no estilo (simples, directo e criativo) como na organização interna, com os jornalistas a deterem a maioria do capital da empresa. No contexto de um agudo condicionamento do exercício jornalístico, que terá como contracampo a afirmação de um jornalismo veementemente militante, O Jornal nasce nos antípodas dessa orientação, e sob a força propulsora do ideal – ou “sonho” – de uma informação livre e esclarecedora, emancipada das forças económicas, políticas, culturais ou religiosas, mas que ainda assim não se inibe de manifestar uma índole crítica face à atuação das forças militares e políticas, nos trâmites de um combate ao gonçalvismo.

7De seguida, em “A Revolução e o conflito em torno da Rádio Renascença: a emissora católica na definição política do novo regime (1974-75)”, a investigadora do IHC-FCSH e do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa Paula Borges Santos elenca os dilemas dimanantes do conflito que, entre Abril de 1974 e Dezembro de 1975, envolveu a emissora católica – Rádio Renascença (RR). Levanta-se a este respeito com especial tónica a questão da liberdade religiosa e do direito de a Igreja Católica ter – ou não – meios de comunicação social próprios, exarado na Concordata e na lei de liberdade religiosa de 1971. Sendo susceptível constatar-se aqui alguma generalização da nossa parte, podemos dizer brevemente que a luta em torno da RR firmou dois alinhamentos distintos, balizados entre a gerência da RR, favorável a uma linha de continuidade coadunada com a doutrina da Igreja Católica, e os trabalhadores, eles próprios divididos, que propugnavam simultânea – e contraditoriamente? – o pluralismo democrático e a legitimidade revolucionária para afrontar um modelo de gestão que vinculavam à ordem política derrubada e que acusavam de praticar censura sobre os conteúdos da programação difundida. O processo da RR saltou para o domínio público, adensando a conflitualidade social e galvanizando o confronto partidário entre a esquerda revolucionária e as forças moderadas socialistas. A autora conclui que o procedimento governamental que determinou o encerramento definitivo do processo revelou a importância que o poder político, neste caso o PS, atribuía à Igreja Católica na estabilização do regime democrático e no reforço da frente político-militar moderada.

8O quinto artigo, assinado pelo investigador no CEIS20 da Universidade de Coimbra Francisco Pinheiro, sob o título “Mãos lavadas – Uma ideia de jornalismo desportivo no período revolucionário”, percorre a trajectória da imprensa desportiva entre 1973 e 1976, revisitando especialmente as alterações por ela sofridas no pós-25 de Abril. Os jornais desportivos, acusados de favorecimento ideológico do anterior regime, são alvo de saneamentos políticos, e a sua política editorial sofre também mudanças, evidenciando-se o fim da disjunção entre a política e o desporto. As análises ideológicas ao papel deste e da imprensa durante a ditadura passam a constar com regularidade nas páginas de jornais desportivos como A Bola e Record, e o jornal Mundo Desportivo revela-se também ele politicamente muito activo, condenando a tentativa de golpe de Estado do 11 de Março. No que concerne às vendas de jornais desportivos, apontados negativamente como um dos instrumentos que o regime do Estado Novo usara para manipular as massas, estas só começariam a recuperar a partir de 1976, quando terminam as perseguições políticas nas redacções. Até aí, o desporto, e em especial o futebol, registam um desinteresse momentâneo.

9No último texto, “A Imprensa na Revolução de Abril: refundar o quotidiano, estimular a crença e renovar o visualismo político”, o investigador do CEIS20 da Universidade de Coimbra Marco Gomes salienta a relevância da “linguagem revolucionária”, subsidiada por elementos iconográficos, para reconstruir o mundo político e social e introduzir novas crenças políticas no âmbito da recepção. O autor identifica nesta “linguagem revolucionária” que fervilha nos jornais portugueses do período em análise uma retórica de ruptura e uma diligência de sinalizar um esquema maniqueísta, dualismo metaforicamente conotado com as forças políticas que se digladiavam entre si e que recriava o ambiente das lutas de classe. No entanto, enfatiza-se também a diversificação de conteúdos temáticos e de dispositivos cénicos e a proliferação de artigos de opinião que cruzam os media deste período. Numa abordagem que atribui primazia ao tópico das ideologias e do poder simbólico da linguagem, Marco Gomes concebe a cobertura feita por jornais como o Diário de Notícias, o Diário de Lisboa e O Século e o discurso destes não só como reflexos dos conflitos quotidianos mas também como agentes performativos, que modelam as lentes com que os leitores percepcionam o mundo social, e que, desse modo, alimentam, eles próprios, o desenvolvimento de ideologias, e se inserem, incrementando-o, no jogo político. Esta imprensa é, portanto, e ao mesmo tempo, constituída por novas formas de comunicar política e constitutiva dessas mesmas práticas comunicativas.

10Estes seis artigos que apresentámos resumidamente, quer focando a instabilidade e o clima de braço-de-ferro que se vivia tanto dentro dos media como entre os media e o poder político, quer descobrindo o surgimento de novos projetos políticos eivados por uma nova concepção de informação e de exercício jornalístico, militante ou estritamente independente, têm em comum a circunstância de tornar perceptível a importância dos meios de comunicação social em geral, mas em particular no conturbado processo de passagem do Estado Novo para a democracia em Portugal. Até ao 25 de Novembro, que, com a estabilização da situação político-militar no sentido da institucionalização da ordem democrática, trará também uma viragem no panorama dos meios de comunicação social portugueses, desenham-se continuamente esforços para controlar as estruturas e também os discursos dos media. Podemos assim afirmar que o derrube da ditadura não significou uma transição instantânea para um regime de “imparcialidade” informativa, que está muito para além da simples supressão de uma censura castradora e da instauração de uma ordem supostamente democrática. No processo de restituição dos meios de comunicação social ao seu próprio controlo, o afã das várias tendências políticas e dos próprios trabalhadores politizados, nos mais diversos patamares hierárquicos, de decidir a orientação dos jornais e de os subsumir ao adágio do triunfo da revolução ou à construção de um certo modelo de sociedade acabou por ditar a substituição de uma intransigente máquina censória por um outro conjunto de dispositivos, mais ou menos subtis, de repressão. O livro A Revolução nos Média insinua a forma como o poder político está também dependente destes para se fazer exercer, e instiga-nos a pensar a relação entre os sistemas de media e os sistemas políticos mais em termos de co-evolução do que de estrita sequência causal.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Tânia Alves, «O Jornalismo e a turbulência da pós-revolução. A Revolução nos Média. Maria Inácia Rezola e Pedro Gomes (coords.)»Comunicação Pública [Online], Vol.9 nº16 | 2014, posto online no dia 15 dezembro 2014, consultado o 29 março 2024. URL: http://journals.openedition.org/cp/868; DOI: https://doi.org/10.4000/cp.868

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Autor

Tânia Alves

Instituto de Ciências Sociais, Universidade Lisboa

taniaa_a@hotmail.com

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