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O novo público da esfera pública e a reconceptualização do consenso como topos da comunicação pública

The new public of the public sphere and the reconceptualization of consensus as topos of public communication
João Pissarra Esteves e Regina Célia Escudero

Resumos

Para discutir o papel da comunicação pública como elemento de articulação dos públicos na esfera pública, recorre-se aqui à teoria filosófica da ética da discussão, constituída na base dos conteúdos morais gerados espontaneamente a partir da experiência comum de um mundo da vida, a nível das relações sociais quotidianas. O público assim entendido é o sujeito colectivo com capacidade de mobilização desta esfera pública, numa perspectiva inclusiva, democrática e aberta à participação de todos nos processos de comunicação. A construção de entendimentos comuns é o seu desiderato, de que o consenso é paradigma – pelas garantias de solidez (em termos racionais) que oferece. Importa, porém, não confundir consenso com mero assentimento – perante um qualquer sentido que se apresente como indiscutível ou irreversível. O propósito do presente artigo é esclarecer as condições desta dinâmica comunicacional: será ela ainda possível num mundo cada vez mais complexo e pluralista como o nosso, haverá aqui ainda lugar para uma sociedade civil verdadeiramente autónoma, activa e vibrante?

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Notas da redacção

Recebido: 1 Julho 2014

Aceite para publicação: 12 Dezembro 2014

Texto integral

1. Público e Comunicação Pública: o medium do sujeito colectivo da nova Esfera Pública

1O reconhecimento da importância da comunicação para a Esfera Pública – desde o seu mais regular funcionamento até às suas formas de mobilização mais exigentes – convoca para a discussão as temáticas do Público e da Comunicação Pública. O público a que nos referimos neste artigo é um sujeito colectivo que se expressa numa esfera pública democrática na procura de um entendimento sobre questões controversas e de interesse geral. O meio por excelência para alcançar esse entendimento é a comunicação pública, à qual cada público recorre quer internamente (como garantia para o relacionamento interno dos seus membros) quer externamente (no que envolve, por exemplo, o relacionamento dos diferentes públicos entre si).

2Por outro lado, assumimos também que a linha de raciocínio aqui desenvolvida tem por fundamento uma ética da discussão, ou, mais precisamente, um ponto de vista normativo no qual a comunicação assume um lugar central: comunicação argumentativa, constituída em torno de um conjunto de princípios racionais bem definidos, mas também uma comunicação que deve ser considerada enquanto processo – uma realidade dinâmica e contingente, pois, que a todo o momento põe em questão e reelabora o próprio conceito que a pretende definir (Esteves, 2007, p. 290).

3O lugar desta ética da discussão não é estranho à argumentação teórica – aliás, esta é mesmo a sua primordial referência normativa; mas, por outro lado, ela também se situa, plenamente, numa esfera da discussão prática – o plano fáctico dos processos interlocutivos da nossa experiência quotidiana. É na confluência destes dois planos da comunicação, numa tensão fundamental de normatividade e facticidade, que a ética da discussão define o seu lugar próprio. Os públicos são o seu agente e o estabelecimento de entendimentos comuns o seu locus – de que o consenso é, por assim dizer, o paradigma em termos de garantias de racionalidade. A solidez deste, porém, não pode ser dada como inquestionável ou irreversível, no quadro das democracias representativas de massa dos nossos dias (de sociedades complexas e plurais): mesmo os consensos são sempre acordos provisórios, que servem de base a novas reflexões, e a novos processos de opinião e argumentação permanentemente em movimento.

4Acreditamos que a ética da discussão tem um carácter processual, pois é gerada a partir de conteúdos morais que têm o seu enraizamento num dado momento histórico e no mundo da vida daqueles que são os seus sujeitos, os públicos nas suas relações sociais quotidianas. Habermas (2003) refere-se ao mundo da vida como o contexto do agir comunicativo em que se procura o entendimento mútuo entre os sujeitos (organizados em públicos), e deste modo, também, sem dúvida, a base de sustentação da esfera pública dos nossos dias.

O mundo da vida constitui, pois, o contexto da situação da ação; ao mesmo tempo, ele fornece os recursos para os processos de interpretação com os quais os participantes da comunicação procuram suprir a carência de entendimento mútuo que surgiu em cada situação de ação. Porém, se os agentes comunicativos querem executar os seus planos de ação em bom acordo, com base numa situação de ação definida em comum, eles têm que se entender acerca de algo no mundo (Habermas, 2003, p. 167).

5A nossa concepção quanto ao comportamento do público é de que o mesmo assume uma dimensão ético-política e sócio-histórica. Trata-se, o público, de uma entidade formada por pessoas, por indivíduos que se relacionam entre si e com a realidade externa de uma forma procedimental e norteados por uma determinada ética. As forças políticas de transformação dos públicos têm um fundamento ético-político, mas definido, necessariamente, a partir do contexto social; este, porém, pode sempre ser também modificado pelas visões críticas advindas de algum novo padrão ético-moral definido pelos próprios públicos. O contexto destes públicos – e do Público dos públicos que os reúne, enquanto agregação simbólica desta multiplicidade de experiências de sociabilidade – é uma sociedade civil organizada procedimental e dialecticamente, a qual é ao mesmo tempo o seu sujeito e o seu objecto de transformação.

6À comunicação pública creditamos a capacidade de concretizar a inclusão democrática de indivíduos de diferentes classes sociais, estratos políticos e grupos culturais, constituintes desta nova esfera pública, da qual, como já referimos, o Público constitui o actor principal e o seu sujeito colectivo por excelência. Mais do que um simples contexto da esfera pública, o Público (pela mão de cada um dos múltiplos públicos concretos que potencialmente o constituem) age sobre esta como seu mobilizador (sujeito colectivo). Isto significa, portanto, que a sua força e o seu protagonismo se encontram vinculados a um ideário transformador, isto é, a uma vontade política de intervenção nesse contexto (e sobre esse contexto), muito mais do que, propriamente, a uma real capacidade de organização social. Diferentes forças concorrem no cenário da esfera pública, embora as mesmas nem sempre favoreçam, necessariamente, o desenvolvimento de acções organizadas e racionais; mas, apesar deste constrangimento, a existência dos públicos não deixa de se fazer presente, estando a sua afirmação associada à sua capacidade de contribuir para a formação de opinião pública no âmbito da sociedade civil. As conceptualizações de público que assumem um ponto de vista funcionalista estão fortemente comprometidas com uma visão societária que privilegia a manutenção do status quo e a resposta às necessidades do sistema (a sua estabilização ou homeostasia). Neste sentido, deslocam o público da sua realidade concreta, que se encontra em permanente transformação, e apresentam-no de uma forma estática e abstracta, quase como uma ficção, isto é, como uma entidade social que se assume sempre de forma racionalizada, independentemente das inúmeras variáveis que interferem no seu processo de organização. Trata-se, na verdade, de uma pressuposição de racionalidade que não é imanente ao público, mas imposta a partir do exterior – de forma estratégica e recorrendo a técnicas persuasivas, ao serviço de elites sociais. De acordo com estas conceptualizações, qualquer público deixa de poder ser considerado enquanto tal sempre que não atenda às características performativas que lhe foram imputadas a priori – ou seja, um grupo aparentemente racional, actuando de forma informada e que se posiciona operacionalmente sobre os assuntos mais convenientes, e que se pretende disponível para a partilha de um consentimento, o qual, de forma ilusória, se dá a ver como um consenso.

7Mas este sujeito colectivo assume uma disposição política para agir sobre o seu meio envolvente, a qual pode ser também transformadora, na medida em que é gerada (potencialmente, pelo menos) a partir de uma mobilização em torno de interesses públicos (Esteves, 2003, pp. 29 e 30).

8Importa, em seguida, detalhar mais cuidadosamente as condições de performatividade dos públicos que temos vindo a equacionar – o que possibilita que estes se orientem para a acção, e, deste modo, transcendendo a sua condição elementar de uma mera forma de sociabilidade, se tornem, precisamente, atores sociais. Enquanto congregações humanas, uma forma típica de aproximação dos indivíduos, os públicos distinguem-se pela sua homogeneidade e durabilidade, que são resultado do seu carácter simbólico. Uma poderosa ideia, já antiga, que se tornou uma referência absolutamente incontornável para a compreensão destas matérias, é a de “excitabilidade espiritual” (dos públicos) (Tarde, 1989, p. 30). Esta noção recorda-nos que o que mantém próximos os membros de um público é o sentimento de uma certa partilha de ideias, ou, mais exactamente, a consciência dessa comunhão. Isto significa, portanto, que as motivações originais dos públicos não são à partida de ordem material, e que a sua mobilização primordial não é dirigida para a acção. Na verdade, esta última nem tão-pouco pode ser considerada um critério obrigatório da existência de públicos. Quando surge, é só num segundo momento, por assim dizer: em resultado de uma força de convicção que é transmitida pela tal experiência (contingente) da comunhão.

9A análise social requer demarcações históricas e contextuais precisas, ou seja, deve ter sempre por base um conhecimento empírico da realidade. Somente desta forma será possível compreender as contradições, as dificuldades, as expectativas e as limitações do público perante a realidade em movimento:

Para deslindar os processos sociais de transformação verificados no escopo da democratização, as investigações teriam, portanto, que penetrar o tecido das relações sociais e da cultura política gestada nesse nível, revelando as modificações aí observadas. Ao mesmo tempo, rompendo o véu do discurso institucional universalista, esses estudos necessitariam debruçar-se sobre os padrões concretos de relacionamento entre o Estado e a sociedade civil, analisando o papel de atores como movimentos sociais, organizações não-governamentais etc. para a operação de transformações em tais relações (Costa, 1997).

10Cremos que parta deste tipo de análise bem situada contextualmente a importante distinção de actores participantes deste público: de um lado, os que ajudam realmente a criar a esfera pública, em sentido sociológico; de outro, aqueles actores que se limitam a adoptar (de forma mais ou menos teatralizada) um papel social já definido (e institucionalmente estabelecido), numa esfera pública já existente e tendo em vista acima de tudo a satisfação dos seus próprios interesses particulares (Habermas, 1997, pp. 95 e ss.).

2. Público e Esfera Pública

11No âmbito desta nossa discussão, como já ficou subentendido, as expressões esfera pública e espaço público são consideradas sinónimas, sendo que a sua vitalidade (da esfera ou do espaço público) é em qualquer caso sempre conferida pela comunicação:

Esfera ou espaço público é um fenômeno social elementar, do mesmo modo que a ação, o ator, o grupo ou a coletividade; porém, ele não é arrolado entre os conceitos tradicionais elaborados para descrever a ordem social. [...] Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana (Habermas, 1997, p. 92).

12De modo geral, existem duas formas típicas de entendimento da esfera pública no que se refere à sua dimensão comunicacional: uma que privilegia os meios de comunicação social e outra que atribui prioridade à comunicação interpessoal. Mas o excerto de J. Habermas acima reproduzido alerta-nos, precisamente, para a vantagem (mesmo a necessidade) de uma visão integrada destes dois planos da comunicação, no sentido em que a efectivação da comunicação quotidiana e da acção comunicacional em geral acontece por via de recursos (actos de fala) que têm uma proveniência difusa, ou seja, tanto podem partir da comunicação interpessoal como da comunicação dos media – sendo, aliás, o seu entrelaçamento praticamente inevitável. Este ponto de vista corresponde a uma concepção mais aberta sobre os media, como o próprio autor reconheceu, após um certo afastamento em relação à ortodoxia frankfurtiana da indústria da cultura (Habermas, 2012, p. 41).

13A primeira perspectiva situa os meios de comunicação no centro da formação da esfera pública, enquanto elemento organizador das massas, e, genericamente, adopta um ponto de vista de manipulação, reconhecendo uma forte motivação de controlo dos meios por parte dos grandes centros de poder das sociedades (políticos e económicos). Neste sentido, mesmo considerando-se a esfera pública como um fórum comunicativo, as diferentes posições no seu interior aparecem como distintas e descompassadas, o que contradiz a concepção de esfera pública como um espaço de comunicação aberto e essencialmente igualitário, acessível em termos democráticos a todos e que oferece iguais oportunidades de discussão – estamos perante a situação típica de “crise da voz” (enquanto processo e enquanto valor) a que se refere Nick Couldry: uma voz silenciada, pura e simplesmente, ou uma voz diminuída na igual dignidade que a cada um é devida (2010, pp. 1-19).

14Considerar hoje os media como atores principais da esfera pública não dispensa uma outra consideração fundamental sobre a importância que cabe reconhecer aos interesses económicos e políticos hegemónicos, ficando para o público (enquanto plateia) reservada uma posição menor: a do actor que não tem efectivamente garantido o direito à sua voz pública. Neste quadro, só como excepção se pode imaginar a hipótese de esta “plateia” chegar a organizar-se para reivindicar dos actores institucionais um tratamento adequado das questões de interesse público, embora tal seja, ainda assim, uma possibilidade, que hoje se torna plausível, sobretudo, por via dos movimentos sociais organizados e das novas formas de identidade – meios a que os públicos recorrem para se transcenderem enquanto plateia e agirem de modo a resgatar o seu papel enquanto verdadeiros públicos.

15A segunda concepção valoriza os espaços de comunicação interpessoal e as redes colaborativas informais de intercâmbio como elementos formadores da esfera pública. De acordo com esta perspectiva, os elementos referidos (e o tipo de dinâmica que os anima) podem relativizar a acção manipuladora dos media e apontam para a possibilidade de uma afirmação efectiva de formas discursivas de comunicação no interior da esfera pública.

16Recorrendo à sua capacidade crítica e analítica, este público submete de um modo geral as mensagens que circulam publicamente a uma avaliação de ordem qualitativa, tanto a nível semântico (de conteúdo) como pragmático (intencionalidade e efeitos), que é possibilitada quer pelo contexto sociocultural deste público quer pelas suas redes interpessoais de comunicação. Por outro lado, há também que considerar a possibilidade de estas redes informais de comunicação interpessoal se organizarem em estruturas mais complexas, passando a actuar como movimentos sociais ou associações cívicas, o que lhes confere uma maior visibilidade (e reconhecimento) no contexto da esfera pública.

17Outra questão importante a discutir é a abertura dos media a novos actores colectivos, por meio de uma organização mais democrática das suas agendas e de uma possível legitimação destes meios junto dos actores locais, isto apesar do quadro de um forte constrangimento comercial a que os media nos dias de hoje se encontram sujeitos. A razão desta ambivalência está inscrita no princípio de legitimidade dos próprios media:

Por muito poderosos que os media se tenham tornado, eles têm de manter alguma aparência de diálogo como o público. Existe sempre, portanto, um certo grau de abertura, de dupla dimensão no processo de comunicação: quando surge um público ativo que desafia os limites do discurso político, os media não o podem ignorar, sem colocarem em risco a sua própria legitimidade (Hallin, 1988, p. 143).

18Acreditamos que o público seja, verdadeiramente, o sujeito de uma esfera pública democrática, em função da sua natureza crítica, informada e portadora da opinião pública. Mas temos também consciência de que este público, compreendido na base de uma teoria do discurso, nem sempre se encontra totalmente disponível para a formação autónoma da opinião, do mesmo modo que nem sempre a esfera pública se apresenta de uma maneira organizada.

A expectativa de resultados racionais fundamentada pela teoria do discurso alicerça-se antes na conjugação da formação da vontade política institucionalmente constituída com os fluxos de comunicação espontâneos, não permeados pelo poder, de uma esfera pública programada, não para a tomada de decisões, mas para a exploração e resolução de problemas e, neste sentido, não organizada (Habermas, 2012, pp. 56 e 57).

19A esfera pública dos dias de hoje não contempla de forma linear os ideais inspiradores da sua própria constituição: o público (onto) e a igualdade (ideo). Ao contextualizar-se o indivíduo na realidade social e mediática actual (século XXI), este conceito necessita de ser redefinido nos seus novos contornos e nas suas novas conotações, numa sociedade globalizada que ao mesmo tempo informa e aliena, incluindo e excluindo o sujeito da esfera pública.

20Trata-se aqui de uma concepção discursiva dos públicos, a qual começa por reconhecer a importância da comunicação e das trocas discursivas que se estabelecem entre os sujeitos a nível do mundo da vida – o plano primordial de uma comunicação da sociedade consigo mesma, na procura de soluções para os problemas do quotidiano. O horizonte desta dinâmica aponta para um entendimento entre todos os participantes, idealmente sob a forma de um consenso, mas que, como sabemos, em muitas circunstâncias apenas pode ser operacionalizado como um certo compromisso razoável.

21Os públicos devem a sua constituição e têm a sua razão de ser numa relação muito peculiar público/privado, que se gera no seu próprio interior: existe aí reservado um papel importante para cada um dos seus membros constituintes, pois os sujeitos individuais são os condutores por excelência das opiniões no interior desses colectivos, no que diz respeito aos assuntos em geral debatidos pela sociedade civil no espaço público e por meio da comunicação pública. A esta forma tão especial de mediação público-privado devem os públicos o seu relevante papel histórico de pioneiros da modernidade.

22As condições de existência dos públicos ao longo do desenvolvimento das sociedades modernas, e sobretudo com a sua elevada complexificação nos dias de hoje, alteraram-se de forma muito substancial. O ideal performativo dos públicos, cuja razão de ser advém da sua autonomia e da sua capacidade diferenciada para exercer uma reflexão/um raciocínio sobre assuntos de interesse público, tende hoje a apresentar-se absolutamente em contraposição ao poder das principais forças que comandam a lógica de interesses da sociedade. Apesar da capacidade – discursiva e simbólica – dos públicos para neutralizarem tais forças, fazendo valer a sua racionalidade intrínseca e a autonomia que conseguiram conquistar, e recorrendo ao acesso à informação e à liberdade de opinião, nem sempre isso chega para definir um outro estado de coisas: a realidade fáctica dos públicos não consegue validar a sua capacidade potencial. Para compreender esta contingencialidade (a articulação variável das dimensões normativa e fáctica da realidade), mais uma vez deve-se sublinhar a importância do aspecto político e contextual da comunicação pública. Sendo certo, porém, que a distinção destes dois planos da realidade permite equacionar não só as suas dissonâncias mas também a sua implicação mútua; importa atender em especial ao movimento capaz de imprimir influência na realidade empírica da vida social, capacidade derivada da força simbólica dos públicos e que tem por origem a sua base normativa racionalmente constituída:

A importância dos públicos no mundo moderno ficou a dever-se, em larga medida, a esta sua força pragmática, à possibilidade de esta nova forma de socialidade gerar actores sociais (colectivos) no pleno sentido do termo, com capacidade de intervenção sustentada numa sólida base simbólica e racional (ideais e convicções), criteriosamente orientada e observando exigências de responsabilidade (Esteves, 2003, p. 29).

23Por este motivo, a relação entre os públicos e as instituições da sociedade é, na maioria das vezes, de tensão: os públicos tendem a promover a inovação, enquanto as instituições representativas dos primeiro e segundo sectores organizacionais se pautam pela estabilidade. Desse modo, desenvolve-se um processo de bloqueio por parte das instituições perante a dinâmica de uma esfera pública genuinamente representativa dos interesses colectivos. A tensão que se estabelece nesta relação é fruto de um processo questionador, crítico, que procura novos horizontes a partir das discussões realizadas no espaço público. O contrário é a manutenção do status quo, a confirmação (e o reforço) de uma realidade constituída de acordo com a lógica de interesses dos grupos hegemónicos da sociedade, numa base de dominação social.

24Os públicos, como mobilizadores da esfera pública, promovem, além de um debate sobre a realidade, o questionamento constante do seu próprio devir. São, portanto, agentes das transformações sociais. Entendemos que a comunicação pública presente neste contexto é democrática, pois emerge das características próprias de cada público, sem qualquer padrão estabelecido a priori. Por outro lado, mas ainda em termos democráticos, a acção inovadora dos públicos prolonga-se através da sua interacção regular com as diferentes instituições sociais (políticas, mas não só), tendo como veículos privilegiados a intervenção dos “publicistas” (isto é, os discursos produzidos, a partir do seu próprio interior, por membros mais destacados dos públicos, que assumem um papel de críticos sociais) e a intervenção de movimentos sociais, cujas formação e actuação são potencialmente regeneradoras dos próprios públicos.

3.Uma Nova Esfera Pública

25A condição de cidadania define o estatuto do membro da esfera pública, o qual tem por horizonte a liberdade de discutir e expressar as suas opiniões relativas aos problemas da vida em comum. Através da esfera pública, o cidadão encontra uma forma de participação activa na sociedade, através tanto de uma relação vertical com o Estado quanto de uma relação horizontal com todos os demais membros da esfera pública (os cidadãos entre si). A comunicação pública é o recurso presente nestes dois planos relacionais, e, quanto mais a sua forma for democrática, maior força ganham os princípios genuínos quer de uma verdadeira comunicação pública quer da cidadania; trata-se dos princípios que regem um acesso emancipado dos sujeitos (individuais e colectivos) aos diversos fóruns de discussão e deliberação pública, sem exclusões. Estes fóruns de encontro e de trocas simbólicas representam, genuinamente, a esfera pública: esta “não é preservada ou, no limite, protegida de distorção simplesmente pelo aparato legal, mas por uma sociedade civil que a emprega ativamente” (Gomes e Maia, 2008, p. 102).

26Uma das principais funções desta esfera pública é fazer ressoar, na sociedade, questões relativas ao mundo da vida, discutidas por públicos informados e organizados colectivamente, que têm como limite o alcance das utopias. Habermas, na sua obra seminal, de 1962, sobre a Esfera Pública, dedica uma atenção especial à estilização burguesa desta estrutura social, na qual participam tanto o sector privado e do mundo da vida quanto o sector público (do Poder), e na qual se processam as discussões entre sociedade civil e Estado, de acordo com uma lógica deliberativa. Segundo o autor, é através da mediação desses interesses diversos, articulada pela comunicação pública, que a opinião pública pode emergir com maturidade suficiente para influenciar o que está à sua volta, a ponto de conseguir transformar a realidade social. A sua forma de afirmação será tipicamente moderna, mas quanto aos propósitos é o modelo helénico que lhe serve de paradigma:

O reino da necessidade e do efémero permanece mergulhado na penumbra da esfera privada. Face a ela, a esfera pública destaca-se, na autocompreensão dos Gregos, como um reino da liberdade e de perenidade. Só à luz da esfera pública se manifesta aquilo que existe, tudo se torna visível para todos (Habermas, 2012, p. 72).

27A esfera pública burguesa, no decurso do desenvolvimento da modernidade, acaba por proporcionar o aparecimento de uma nova esfera social, na qual instituições privadas e públicas assumem novos perfis à medida que o público é privatizado e o privado passa a desempenhar funções públicas. Surge, assim, uma esfera social repolitizada, fruto desta nova forma de organização da esfera pública, na qual público e privado tendem a tornar-se indiferenciáveis.

28Na actualidade, fazem parte desta esfera social associações de interesse privado, organizadas colectivamente, partidos políticos e órgãos públicos, que, por vezes, passam a colocar-se para lá da esfera pública e agem mais como órgãos corporativos do que como representantes de interesses públicos. O público propriamente dito só muito esporadicamente é incluído nesta esfera, e apenas de forma plebiscitária, a fim de aclamar e referendar, por meio do voto, as deliberações já estabelecidas. O seu papel, assim, torna-se mais no de um consumidor de ideologias, e, de forma similar, a esfera pública assume-se também mais como um instrumento político e económico de perpetuação de um sistema ideológico, por meio de uma injunção de carácter positivista definida a partir do seu interior. Em vista está forjar consentimentos que se apresentam (ilusoriamente) como consensos, mas que podem ser definidos como uma opinião não-pública, pois na sua origem está um público manipulado:

Não está estampado na cara desta “opinião pública” se ela veio ao mundo pela via da comunicação pública ou numa produção mediatizada; com o que fica também sem resposta se esta mediatização se deve entender como a mediação de uma tendência de massa que é incapaz de se articular a si mesma, ou como a redução a um eco plebiscitário de uma opinião que, embora capaz de alcançar o esclarecimento, foi integrada à força (Habermas, 2012, p. 393).

29A esfera pública, que se afirma pelo debate entre indivíduos privados e pelo uso da razão para argumentar e contra-argumentar em prol de um entendimento, veicula sinalizações fundantes da teoria da democracia. É uma etapa importante do processo democrático e de inclusão, tendo como seu sujeito por excelência o conjunto (sem excepções) dos indivíduos interessados em participar nela, envolvendo-se em debates e na procura de consensos – que não se devem confundir com um qualquer consentimento extorquido por manipulação das consciências: o consenso é objecto de deliberação pelos sujeitos públicos e é definido na esfera pública, de forma democrática e por meio de uma acção dialéctica, enquanto fruto de uma discussão pública livre em torno de interesses comuns. Não pode ser, pois, a mera expressão contingente da vontade de todos ou de uma maioria, mas obedece a uma exigência de legitimidade (pela qual responde um processo de argumentação e deliberação públicas).

30A participação da sociedade civil na esfera pública da modernidade é fruto de uma dimensão de cidadania que, a cada dia, incorpora valores sócio-democráticos e de participação pública. Neste sentido,

O papel preponderante da sociedade civil é influenciar a mudança do status quo, do poder do Estado e do mercado, para atender às demandas das necessidades emergentes locais, nacionais, regionais e globais. Em uma perspectiva mais clássica, é a luta pela conquista dos direitos à cidadania, da justiça e dos valores sociais (Kunsch, 2007, p. 60).

31Em 1990, Habermas, num prefácio à sua célebre obra dos anos 60, elabora um mea culpa relativamente a alguns pontos do seu pensamento inicial sobre a esfera pública das sociedades modernas. Sustenta, nomeadamente, que ao abordar a esfera pública na actualidade é necessário valorizar o multiculturalismo característico das nossas sociedades democráticas: já não se trata de um espaço público monolítico, dominado por uma única classe social. Torna-se, pelo contrário, fundamental compreender o seu pluralismo e a sua dinâmica.

Mesmo partindo da perspectiva de uma certa homogeneidade do público burguês, que podia discernir no interesse comum de classe – por muito fraccionado que este estivesse – o fundamento para um consenso, que pelo menos em princípio poderia ser alcançado pelas lutas dos partidos, é errado falarmos do público no singular. Abstraindo das diferenciações no seio do próprio público burguês, que com algum ajustamento do ângulo de abordagem podem ser também acomodadas no meu modelo, se admitirmos desde o início uma pluralidade de esferas públicas concorrentes e, ao mesmo tempo, se tivermos em conta a dinâmica dos processos de comunicação excluídos da esfera pública dominante, é uma outra imagem bem diferente que ganha forma (Habermas, 2012: 25 e 26).

32O que está em questão, realmente, é a formação de uma nova esfera pública, já não burguesa mas ‘plebeia’, com características bastante diferentes das da sua antecessora e com um legado cultural próprio, formado a partir da influência de uma intelectualidade radical e de uma comunicação que com o desenvolvimento dos media assumiu uma projecção ímpar. Trata-se de uma esfera pública plural e multicultural, que resgata o seu referencial emancipatório, que se forma no contexto de uma nova cultura política, com características populares, e que, apesar de excluída do poder dominante, encontra formas legítimas de fazer valer a sua representação.

33Benhabib (2002, p. 106) considera que o modelo que melhor responde a esta nova esfera pública multicultural é o de democracia deliberativa, que se baseia num discurso ético e mobilizador da sociedade civil, com base nos seguintes princípios: igualdade de condições para o conjunto dos membros da sociedade, voluntariado e liberdade de associação. A regra de ouro do seu funcionamento é o respeito e a igualdade entre todos os que fazem parte deste universo de deliberações.

34Por sua vez, a esfera pública baseada nos princípios da democracia deliberativa sustenta-se também em três princípios fundamentais: ampla e irrestrita agenda de discussões, foco nos interesses da sociedade civil (sem restrições ou pré-conceitos) e valorização do processo de discussão (sem as imposições ou as coerções próprias de uma esfera pública colonizada pelo poder). O início deste novo século está a trazer vários casos exemplares de dinâmicas democráticas deste tipo, como aconteceu recentemente em Portugal, em 2012 e 2013, com as movimentações populares que tomaram as designações de Indignados de Lisboa, Indignados de Portugal, M2M ou Que Se Lixe a Troika, cujo formato foi tipicamente o de novos movimentos sociais, numa mobilização que se constitui em nome da renovação das reivindicações do “cidadão social” (Santos, 1996). Algumas das acções cívicas destes movimentos foram muito expressivas em termos de adesão pública, como, por exemplo, as manifestações de 15 de Setembro (2012) e de 2 de Março (2013), que reuniram vários milhares de pessoas de diversas gerações, opções políticas, profissões e nacionalidades, não só em Lisboa mas também noutras cidades de norte a sul do país e até em comunidades portuguesas no estrangeiro. A manifestação de 15 de Setembro em Lisboa foi a maior ocorrida em Portugal desde o 1.º de Maio de 1974. Serviu para expressar o descontentamento do povo com a situação do país, na sequência do pedido de resgate financeiro e das políticas de austeridade impostas pela troika.

35Em Espanha, norteado pelos mesmos princípios, o movimento Democracia Real Ya vinha tendo, também, desenvolvimentos significativos, com um processo de assembleias, debates e ocupação de locais públicos, equivalendo à transformação das ruas e das praças das cidades em autênticas ágoras. Este movimento de ocupação, em mais de 70 cidades de Espanha, teve início no dia 12 de Maio de 2011, e, no dia 15, aconteceu uma grande manifestação, quando largas centenas de pessoas acamparam numa das praças principais de Madrid, a Puerta del Sol.

36Todas estas movimentações populares na Península Ibérica tiveram de algum modo como inspiração a chamada Primavera Árabe, um movimento verdadeiramente revolucionário que se iniciou no Norte da África (em 2010) e que de imediato alastrou ao Médio Oriente, em oposição à repressão política, à falta de liberdade de expressão e em defesa da democracia. Estes protestos também se singularizaram por pretenderem chamar a atenção da comunidade internacional para o que ocorria naquelas regiões.

37Os organizadores enfatizam a sua importância enquanto defesa de um processo democrático, alheio porém à tradição política de quase todos aqueles países. Estes movimentos podem, também, ser definidos como acções cívicas, dado terem por objecto a mobilização das pessoas para a sua auto-organização. As informações são disseminadas entre os participantes, cada vez mais via internet e por meio de diversas redes sociais (digitais, mas não só); surgem sem uma coordenação bem definida, porque a comunicação e a organização destes movimentos têm por base uma horizontalidade, oferecendo a todos iguais oportunidades de participação e voz. Por último, e não menos importante, deve-se destacar o princípio norteador destes movimentos: a definição de consensos a partir das múltiplas (inúmeras e inesgotáveis) vozes que se fazem representar no seu interior. O parâmetro deste consenso vale-se da mobilidade, da historicidade e da alternância das opiniões, motivo pelo qual as conclusões estabelecidas nunca devem ser consideradas como definitivas, nem cristalizar-se na forma de uma opinião pública funcionalizada.

A comunicação crítica não supõe, porém, nem o consenso total, como se um dia todos pudessem ter a mesma postura homogênea, nem o dissenso total (...); exige opção madura, a que se chega após o confronto com outras posições, embasada em crítica interna; exige o tratamento do ponto de vista alheio a partir dele mesmo, antes de refutar; e exige muita renúncia, porque consenso é talvez muito mais a média das desigualdades toleradas do que a média das igualdades fortuitas e impingidas (Demo, 1989, p. 57).

38No Brasil, a partir de Junho de 2013, importantes manifestações populares ocuparam também o espaço público. Com reivindicações diversas, as pessoas saíram às ruas manifestando-se de diferentes formas, por vezes até violentas. A insatisfação com o sistema político brasileiro foi a veia condutora principal destas manifestações, que se iniciaram a partir de um movimento de oposição ao aumento de 20 centavos do preço dos transportes públicos em São Paulo mas que aos poucos assumiram novos contornos e bandeiras: “Não são só os 20 centavos”; “Contra a PEC-37” (projecto de lei que pretendia tirar poder de investigação ao Ministério Público, o qual tem uma actuação determinante no combate à corrupção); “O Brasil tem Copa de 1.º Mundo e educação de 3.º Mundo”.

Um grito de indignação contra o aumento do preço dos transportes que se difundiu pelas redes sociais e foi se transformando no projeto de esperança de uma vida melhor, por meio da ocupação das ruas em manifestações que reuniram multidões em mais de 350 cidades. (...) ‘Não são os centavos, são nossos direitos’. Porque, como todos os outros movimentos do mundo, ao lado das reivindicações concretas, que logo se ampliaram para educação, saúde, condições de vida, o fundamental foi – e é – a defesa da dignidade de cada um (Castells, 2013, p. 179).

39Percebemos nestes movimentos o desejo de romper com o paradigma autoritário que regula as esferas públicas da actualidade, o qual, genericamente, arruma o cidadão numa posição passiva de comunicação, não inclusiva nem pública, enquanto mero receptor de valores e consumidor das ideologias dominantes. Mesmo em esferas tradicionais de discussão, como por exemplo as assembleias de trabalhadores ou as associações de moradores, que recebem a denominação de espaços públicos, a comunicação que as permeia é muitas vezes restritiva quanto à participação e à circulação de ideias e opiniões, e fortemente dominada por uma lógica verticalizada, com um emissor activo e um (muitos) receptor(es) passivo(s).

40Na perspectiva destes novos movimentos sociais, o direito a ter direitos passa a ser visto como uma conquista do cidadão e não mais como uma atribuição do Estado, pois baseia-se no direito à igual dignidade de diferentes indivíduos, grupos sociais, povos e nações, que representam a actual multiculturalidade. Neste contexto, embora os indivíduos continuem a nascer desiguais, conquistam o direito à igual dignidade entre os diferentes.

41O espaço público globalizado, que articula em si mesmo diferentes dimensões (internacionais, nacionais, regionais e locais) e diferentes tipos de comunicação pública (presencial, virtual, regular e esporádica), torna as relações mais dinâmicas, mas também expostas a uma maior fragilidade e à generalidade. Mas há uma esperança que perpassa este espaço público e o reconhece como herdeiro do projecto (não esgotado) da modernidade, em oposição ao modelo acomodado de um espaço público “oficial” das actuais sociedades ocidentais.

42Com base numa relação dialéctica Estado/sociedade, cada um destes pólos é portador de funções políticas próprias, sendo da sua interpenetração que nasce uma esfera pública politizada (e politizadora), constituída por cidadãos que discutem abertamente os caminhos quer da sociedade civil quer do Estado, e que assumem as suas responsabilidades e os seus compromissos perante ambos. O primado do mundo da vida torna-se evidente – ainda – a partir desta perspectiva sobre a dinâmica social (mesmo nas sociedades desenvolvidas e altamente complexas dos dias de hoje):

Uma alteração radicalmente democrática do processo de legitimação visa um novo equilíbrio entre os poderes de integração social, de forma que a força socialmente integradora da solidariedade – a ‘força produtiva da comunicação’ – possa impor-se aos ‘poderes’ dos outros dois recursos de regulação, que são o dinheiro e o poder administrativo, e, com isso, afirmar as exigências do mundo da vida orientadas em termos práticos (Habermas, 2012, pp. 48 e 49).

43A teoria de comunicação que ampara o nosso conceito de consenso, construído numa base horizontal, pública e processual, faz valer uma noção dialéctica da relação emissor-receptor, na qual a cultura, as crenças e as produções socioculturais próprias de cada um destes elementos têm um papel determinante. O que esta dialéctica também revela é o papel activo que cabe à recepção – o “decoding” como uma verdadeira produção (negociada) de sentido (Hall, 1999, pp. 59-61); e ainda a transitividade de cada um destes lugares de discurso: cada interlocutor pode posicionar-se, de forma dinâmica, em qualquer destas posições, alternadamente. Diferente dos padrões da Escola de Frankfurt, que se tornaram alvo de crítica, o receptor não é visto como um sujeito absolutamente passivo da relação comunicativa, pois, ao interagir com outros, promove alterações e constrói novos significados, tendo capacidade para formar o seu próprio pensamento e as suas opiniões individuais a respeito das matérias em discussão:

O conteúdo dos media depende da receção (…) e a receção é o domínio onde as ideologias são reproduzidas mas também potencialmente desafiadas. (…) Mais recentemente, os recetores têm-se tornado cada vez mais uma audiência ativa que produz conteúdos e tecnologias. Neste contexto, as noções de produsers (producer + user) e de prosumers (producer + consumer) podem ser utilizadas com plena propriedade (Fuchs, 2011, p. 159).

44Não se trata de idealizar a opinião pública, que é sempre formada a partir de contextos concretos de recepção, mas tão-só de chamar a atenção para a necessidade de ter em consideração o posicionamento do comunicador perante o contexto da sociedade da informação, de acordo com a perspectiva normativa da comunicação.

4. Esfera Pública: o Público dos Públicos

45O ponto de vista que coloca os públicos na génese do espaço público já foi por nós discutido detalhadamente noutra ocasião (Esteves, 2011, pp. 147 e ss.), tornando evidente a sua importância na modernidade para a expressão dos interesses sociais, a sua formação a partir de uma rede em expansão de informações e comunicação, e ainda as suas características singulares enquanto uma nova forma de sociabilidade: a dispersão física e o carácter simbólico, que se consubstanciam na congregação de um certo número de indivíduos em torno de assuntos de interesse comum. Cada qual chega à esfera pública com as suas próprias características, a sua biografia, os seus modos de ser e de entender a realidade; todo um conjunto de particularidades que se entrelaçam para formar algo novo, que é a esfera pública – o Público dos públicos.

46Os públicos são uma forma de sociabilidade, mas, em certas circunstâncias, podem ser também atores sociais. Em condições favoráveis, assumem uma força pragmática própria e são capazes de imprimir a sua marca performativa na própria realidade social:

A importância dos públicos no mundo moderno ficou a dever-se, em larga medida, a esta sua força pragmática, à possibilidade de esta nova forma de sociabilidade gerar actores sociais (colectivos) no pleno sentido do termo, com capacidade de intervenção sustentada numa sólida base simbólica e racional (ideais e convicções), criteriosamente orientada e observando exigências de responsabilidade (Esteves, 2003, p.29).

47Esta capacidade performativa pode, contudo, ser posta em causa, em resultado da neutralização dos públicos por parte dos interesses sociais hegemónicos. Os públicos têm a capacidade de se opor a tais forças políticas, sociais e económicas por meio da racionalidade e da autonomia que a comunicação lhes garante, mas não é certo que sejam sempre os seus ideais a impor-se.

48Os públicos que formam a esfera pública norteiam-se pela ética da discussão, cujo pressuposto é a ampla participação dos sujeitos na condição de interlocutores. Mas, como sabemos, a dinâmica de desenvolvimento social do mundo ocidental trouxe uma grande incerteza a todo este processo: a frustração do papel crítico do público não só se tornou uma possibilidade, mas hoje, em muitas ocasiões, é essa propriamente a regra, que transforma os membros do público (cidadãos) em meros consumidores de ideias veiculadas por interesses privados, que se se fazem passar perante a sociedade (plateia) como sendo de interesse público (Habermas, 2012, p. 329).

49Nestas condições, a formação da opinião pública já não pode ser considerada como fruto de uma discussão autónoma: não é propriamente uma opinião que tenha sido construída pelos públicos, mas foi sim a estes imposta.

50A esta deriva dos públicos não é estranha a emergência da massa como forma de sociabilidade. Mas também quanto a este conceito é necessário algum esforço de contextualização, para não nos deixarmos enredar no seu significado geral e abstracto de um puro ideal-tipo. Tendo por referência a experiência dos media, Sonia Livingstone (1998) discute a histórica oposição dos conceitos de massa e de público, com o intuito precisamente de os compreender à luz de um novo ponto de vista, isto é, de forma situada. A visão tradicional postula que a massa (audiências) é formada por pessoas passivas, individualistas, sem pensamento crítico e reféns apenas dos seus próprios desejos particulares, enquanto os públicos são definidos como agrupamentos que perseguem o consenso, guiados pelo interesse comum e pautando-se por uma atitude política participativa e esclarecida. Tanto no senso comum quanto na academia, o discurso a respeito do público e da massa tende a apresentar estas duas formas de sociabilidade em lugares opostos, reservando para o cidadão um lugar de subordinação aos interesses particulares – numa sociedade massificada e de consumo. Livingstone (1998) questiona o primitivismo deste esquema, a partir da perspectiva de uma sociedade que põe em relação, e de certo modo faz interpenetrar, estas mesmas categorias:

Em vez de questionar o que são as audiências individualmente consideradas ou como uma massa, ou o que realmente elas são enquanto uma reificação artificial, a investigação deveria conceptualizar as “audiências” como uma construção relacional ou inter-relacional, concentrando-se assim no conjunto diversificado de relações que as pessoas estabelecem com os media (Livingstone, 1998, p. 251).

51Para a autora, é a pesquisa sobre os media que aqui se apresenta como exemplo: por um lado, estes foram o dispositivo por excelência da imposição da massa no nosso mundo (através dos mass media, da comunicação de massa, etc.), mas, por outro, os media têm também contribuído para a formação de cidadãos politicamente envolvidos em questões de interesse público e para a afirmação de novas identidades e modos de vida.

Num mundo completamente mediatizado, audiências e públicos, assim como comunidades, nações, mercados e multidões, todos são constituídos pelas mesmas pessoas. [… Importa assim que] a investigação se dirija para o se, o quando e o como as atividades de audiências específicas e localizadas constituem uma forma de envolvimento cultural com significado para a esfera pública e, na medida em que os diversos media passam a apresentar-se integrados nos processos públicos e cívicos, saber se os media podem transformar – para o melhor ou para o pior – as atividades dos públicos, na medida em que estes cada vez mais se confundem com as audiências (Livingstone, 2005, pp. 17 e 36).

52Há uma série de razões (económicas, políticas, culturais) para opor público e massa, na medida em que podemos associar aos media uma pujante afirmação da massa, e, ao mesmo tempo, a contracção dos públicos. Só que esta avaliação não pode restringir-se apenas aos media (e menos ainda aos media mainstream). Importa considerar outras dinâmicas sociais e culturais – ainda do domínio da comunicação, mas independentes dos media – que interferem também na constituição destas formas de sociabilidade. São recursos com origem na tradição e enraizados no senso comum, que escapam ao poder mediático e contribuem para criar uma aproximação de público e massa, como diversas pesquisas empíricas têm posto a claro.

53O trabalho de Livingstone é paradigmático a este nível, destacando-se o seu cuidado de contextualização dos conceitos, o que lhe permite aperceber-se de que, em certas circunstâncias, não é possível negar à massa uma certa capacidade de contribuir para a definição de questões de relevo público, questões essas que advêm de anseios do quotidiano, não necessariamente com origem nos media mas eventualmente noutros contextos do mundo da vida. Isto surge para além do processo de uma realimentação permanente que põe em ligação receptor, mensagem e meio: é deste modo (e por este motivo) que os discursos e as mensagens dos media podem ser motivo de ressignificações, e é assim que se processa a sua recondução à comunicação pública. A existência de um ambiente democrático condiciona, necessariamente, os limites do entrelaçamento público-massa que aqui estamos a equacionar.

54 Os pressupostos metodológicos funcionalistas da comunicação dão como adquirido que o público assume sempre uma supremacia em relação à massa para determinar o consenso legítimo, mas estas premissas podem ser postas em causa quando confrontadas com a realidade empírica; aí, as diferenças entre as duas formas de sociabilidade esbatem-se.

55A comunicação pública vale-se do processo, do movimento social e do seu contexto para vir à superfície. Parte do sujeito para retornar ao sujeito. Não é, assim, ditada a priori por modelos ou rótulos, mas o produto contingente dos seus próprios sujeitos (público e massa) e de um processo de aprendizagem colectiva relacionado com as possibilidades de transformação social.

56Os comportamentos da massa e do público tornam-se interdependentes, em função do mesmo barro que os molda: os indivíduos enquanto membros de uma dada sociedade ou comunidade, portadores de certa experiência cultural comum. Esta interdependência consiste, também, num processo de ressignificação cultural que envolve tanto os membros da massa como os do público, e cuja orientação não é ditada a partir de cima (por uma elite instituída ou um público esclarecido), mas é sim em larga medida o resultado das tensões culturais permanentes que se geram entre os conteúdos dos media e os significados do mundo vivido que continuam a circular nas audiências.

57Assim, talvez nem a massa seja tão passiva como postulam os seus críticos nem o público tão racional como defendem os seus apologistas. O ponto é, precisamente, este: a ambiguidade e o hibridismo que existe entre os dois conceitos.

58A comunicação pública tem como contexto o espaço público e como sujeito este “novo público”, formado de maneira híbrida por sujeitos anónimos que provêm tanto da antiga massa como do antigo público – as duas formas de sociabilidade podem ser distintas, mas os indivíduos que as constituem são os mesmos. As fronteiras são fluídas, na medida em que as dinâmicas sociais assim o proporcionem, sendo portanto normal que os mesmos indivíduos circulem entre uma e a outra. A inscrição dos indivíduos neste processo segue este mesmo registo: tanto pode pender para o lado da participação cívica por via democrática como para a manipulação dos cidadãos, por indução de visões distorcidas da realidade.

59Este novo conceito de público, que hoje constitui a esfera pública, pressupõe, assim, diferentes patamares de estruturação política da sua acção, que vão do nível micro ao macro.

60Numa pesquisa empírica recentemente realizada (César, 2012) foi possível confirmar que estes patamares de organização se articulam, a nível micro, pelas relações informais dos públicos, caracterizadas por formas elementares de conversação entre amigos, conhecidos, vizinhos e familiares, ou seja, do particular para o colectivo; a nível meso, encontram-se normalmente as formas espontâneas de organização da sociedade civil, que se constituem para a acção colectiva na esfera pública (associações de moradores, organizações não-governamentais, movimentos sociais dos mais diferentes interesses e de diversas matizes); e, a nível macro, encontramos as organizações governamentais e os respectivos agentes políticos, que na esfera pública estão sujeitos à influência dos públicos que formam os demais níveis para a definição das políticas públicas da sociedade.

61Nesta perspectiva, a esfera pública pode então ser reconhecida como um locus verdadeiramente democrático deste público participante da sociedade civil. Este contexto oferece condições para se alcançarem entendimentos por meio da comunicação, sem recurso à violência, física ou simbólica – esta, sendo comum em regimes autoritários, nos dias de hoje, paradoxalmente, não deixa também de marcar presença em muitas instituições (privadas e públicas) das nossas sociedades democráticas.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

João Pissarra Esteves e Regina Célia Escudero, «O novo público da esfera pública e a reconceptualização do consenso como topos da comunicação pública»Comunicação Pública [Online], Vol.10 nº17 | 2015, posto online no dia 30 junho 2015, consultado o 27 março 2024. URL: http://journals.openedition.org/cp/915; DOI: https://doi.org/10.4000/cp.915

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Autores

João Pissarra Esteves

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa

jj.esteves@fcsh.unl.pt

Regina Célia Escudero

Departamento de Comunicação – Universidade Estadual de Londrina

escudero@uel.br

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